Friday, November 30, 2007

Cantiga de Amigo - ou AO LADO DO BAR GARAGEM TINHA UMA PONTE DE VAN GOGH

CANTIGA DE AMIGO I

LUCILA NOGUEIRA

(ou
Ao lado do bar Garagem havia uma ponte de Van Gogh)

ontem quis me entregar à alegria e quase ao acaso
saí com o meu leque imenso vermelho de Madame Butterfly
e depois de cantar ao microfone o princípio de Summertime

eu me deixei levar a um lugar onde há muito queria estar
e na hora que entrei ali mesmo no escuro do som
um fauno de quase dois metros gritou meu nome
e ficamos dançando twist descendo até o chão
nesse bar sem luxo como os que conheci na Colômbia

depois chegou um outro sátiro que ainda não me conhecia
e talvez por isso mesmo me chamou logo ao andar de cima
eu confidenciei ao meu amigo essa proposta com ironia
mas o amigo não entendeu e quis subir na frente e quis ir olhar
e voltou falando que era apenas um acampamento de sofás

foi quando na calçada não sei porque me vieram apresentar
uma versão do Tadzio de Visconti em plena Veneza tropical

eu era apenas uma ex-colecionadora diante de uma tela presa no museu do Louvre
quando alguém jogou sua bebida em cima daquela pele que exaltava a vida

desde uns cinco metros de distância em fatal pontaria de Robin Hood
acontece que o Tadzio era tipo o ídolo daquele súbito Eden subterrâneo
e logo vieram guardiães para agredir o agressor insensato que vestia camisa azul
eu me coloquei Joana D 'Arc no centro do remoinho e do túnel de Ernesto Sábato
e tudo se acalmou na esquina de um bar de fim de noite em dia de sábado
o céu amparava uma lua bêbada sobre as manchas da pantera
no colar e no voile transparente que fazia a valquíria voar
eu lembrei da Sala de Reboco quando o aventureiro de Estocolmo
repentinamente pareceu querer descer em direção ao rio silencioso

pelas suas margens teciam alamedas muitas plantas e jardins
que olhávamos todos de pé com saudade da taça do Graal
cheguei em casa com a manhã nos olhos e na barra da túnica
e um amuleto feito dos sonhos de sete druidas para recordar
que ao lado do bar Garagem havia uma ponte de Van Gogh


CANTIGA DE AMIGO I

LUCILA NOGUEIRA

(versão reduzida)

(Ao lado do bar Garagem havia uma ponte de Van Gogh)


saí com o meu leque vermelho de Madame Butterfly
cantei ao microfone o princípio de Summertime
e me deixei levar a um bar garagem como na Colômbia
faunos e sátiros eu vou agora ao andar de cima
eis a nova versão do Tadzio de Visconti
joga o teu vinho essa pele que exalta a vida
batiza Tadzio meu súbito Eden subterrâneo

agressor insensato canta tua cantiga de amigo e desafio
eu fui tua Joana D 'Arc no centro do moinho
e a rua serenou no bar de fim de noite em resto de sábado
longe a Sala de Reboco e beijo do carteiro de Estocolmo
que não conseguiu descer de repente em direção ao rio silencioso
nós todos de pé abraçados com saudade da taça do Graal
a casa veio com a manhã e um amuleto feito dos sonhos de sete druidas
só para lembrar que ao lado do bar Garagem havia uma ponte de Van Gogh

Fala de Essomerick - MULHER AO MAR

FALA DE ESSOMERICQ
( MULHER AO MAR)
Rua do Bom Jesus em tarde de domingo
tambores e clarins
frevo e maracatu
Mama África
chegou acorrentada como escrava
hoje seu rosto é como um selo em minha pátria
Rua do Bom Jesus em tarde de domingo
a multidão dança na rua
lá vou eu
santa pobreza em traje de rainha
lá vou eu
tua alegria de tambor me ressuscita
tua alegria de clarins pela calçada
cabeças degoladas como máscaras
são os homens que amei
em submisso ritual antropofágico
canibais anteriores a Montaigne
são os náufragos da baía de Audierne
e o teu silêncio te doeu em tua terra ó Goneville
porque ele era a voz de Caliban desesperado
contra a ocupação das Américas
poderoso Goneville
eu sou carijó e devo retornar à minha tribo
Martinho de Nantes
eu sou cariri e devo retornar ao meu Recife
Villegagnon da Bretanha
eu sou carioca e quero voltar ao Rio
à França Antártica, à França Equinocial
aos braços de Azenor, Levenez e Riwanon
por isso ensina-me a escrita
Jean de Léry
que eu sou tupiniquim
ensina-me a bruxaria do papel que fala
as palavras francesas derivadas do tupi
ensina-me tua ciência
Lévy-Strauss
que eu sou tupinambá
e te devolvo a infância
Marcel lProust
e te devolvo o sonho
mon Ronsard
com o feitiço do açúcar
nos sentidos
eu te devolvo
le tranquille repos de la première vie
viens dans ma chaumière
dedans il fait si bom
reste ici
e então tu me pediste
reste ici
e então tu me rogaste
um peu de bonheur
mais je suis le beau sauvage
e estive em Nantes
ó Júlio Verne
só para te dizer
que lá em Olinda
eu conduzi vraiment
uma jangada nordestina
era o vento em meu rosto
la tempête
era o sol sobre a pele
entre os navios
je suis desamparée
mulher ao mar
j’ai besoin de secours
mulher ao mar
ó bravo vento forte
Pernambuco
corsária veli vaga
no drakar
canoa gôndola
rabelo balandra
zambra sultana
arvingel baidar
minha jangada
a bombordo
a estibordo
barca de luzes
leito de farol
a torre cor de rosa
aos pés do cais
livre de rebocadores
vem visitar
ó Goneville
a Vênus prisioneira
deitada sobre a espuma
de um trapézio de plumas
sou tapuia
somos todos filhos de Saturno
e eu reúno as tuas partes decepadas
Yemanjá em noite de oferenda

mulher ao mar.

Poema XX de Refletores

POEMA X X DE REFLETORES

para Sérgio

Caminho entre as cadeiras da platéia
desde o meu nascimento que estou high
você é meu personagem predileto
não vale a pena enfim dramatizar
a cidade mudou e quem devolve
os fins de tarde à mesa do Mustang
os encontros no bar da Livro-7
o strogonoff da cantina Star
feche este livro e não abra os e-mails
todo o meu erro foi pensar demais
dance tecno house ou haevy metal
o bolero e o pagode ou o frevo e o forró
os pássaros estão cantando forte
na súbita claridade da manhã
cercada de néon e raio laser
está na hora de acabar o show
caminho entre as cadeiras da platéia
o último a sair que apague o refletor


Publicado em 2002

Saturday, November 18, 2006

OS AMANTES POSSÍVEIS

por algum motivo não chegaram
e eu não mais os vejo estão perdidos
na memória tão falha do desejo
no asfalto onde se esgota a fantasia

por algum motivo se perderam
e eu me perdi também do seu convívio
mas agora os recordo lentamente
e escrevo a sua estória neste livro


I


Relógio da Faculdade

LUCILA NOGUEIRA


Subi ao encontro do mistério
Da engrenagem do imenso relógio da Faculdade
Não tinha visto ainda a coleção do meu primo português da Régua
Nem lido fascinada os poemas e contos de Jorge Luis Borges
Mas era o meu local preferido onde me refugiava
E ficava horas sonhando os meus contos de fada
Às vezes subia ao terraço sobre o Parque Treze de Maio
Subia na Biblioteca e lia os livros de literatura
O mundo como um palco
Eu dentro do enredo a personagem
O mundo como um cenário
A vida como obra de arte
E eu caminhava de mãos dadas com o meu primeiro namorado
O anel que tu me deste era de vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou
Amaro
Há muito tempo queria dizer esse nome em um poema
Foi no carnaval durante o corso na avenida conde da boa vista
O trauma
E eu caminhei altiva entre eles na calçada
Com a consciência do amor em sua brevidade
E foram três anos sem me apaixonar novamente
qualquer tentativa de aproximação levando na risada
O cravo brigou com a rosa
Debaixo de uma sacada
O cravo saiu ferido
E a rosa despedaçada
Há muito tempo queria evocar aquele tempo
Minha inocência só não era maior que a minha virgindade
eu filha de imigrante atravessando as escadas de mármore e os degraus do anfiteatro
que depois também seriam pisados por minha filha Natália
Alguns amigos inesquecíveis
Ladyclair e Ronaldo
Outros menos próximos como Fabinho e Dorinha
indicando concursos e testes em empresa privada
e eu entrei quase sem perceber no mercado de trabalho
- o que seria da minha vida sem as pessoas que me ajudaram ?
Alguns professores que se tornaram amigos
Como Nelson Saldanha que era poeta e filósofo
E outros que sempre me tratavam com carinho
Como Everardo Luna e José de Moura Rocha
O mito da mulher como grandes mestras
Margarida Cantarelli e Bernadete Pedrosa
o primeiro ano foi na turma da manhã
com a hoje praticamente extinta classe média alta
mas no segundo ano fui reconduzida à minha própria face
no curso noturno onde estudavam todos que durante o dia já batalhavam
e chegavam a adormecer nas aulas de tão cansados que estavam
a alegria das conversas nos intervalos
não existia sistema de créditos como agora
e a turma permanecia mesma até a colação de grau
era uma estória conjunta com os mesmos personagens
a repressão de 1969 rodeava de tanques os jardins da Faculdade
e eu voltava para casa porque esse era o sinal que não haveria aula
o meu olhar ávido percorria esta cidade
e eu continuo totalmente encantada com o início da manhã
cruzando a ponte do Pina magnetizada pelo sol e seu reflexo na água
lembro o meu pai comprando meu anel de formatura na rua Nova
quase na esquina da Igreja de Santo Antonio do meu primo padre
desculpa meu pai
porque depois eu tive que empenhá-lo para sustentar a casa
assim como todas aquelas jóias l que você me presenteara
você que gostava dos perfumes
mas quem sabe não era mesmo um ourives como o seu pai
ternura completamente indizível a memória do seu gesto naquela hora
eu na festa do clube Internacional com o vestido esvoaçante e colorido
que terminou por descer comigo outras escadas durante a madrugada
já sabendo que tudo é incerto
que tudo é sempre pela metade
mas que na vida vale a pena a entrega
ainda que não seja inteira
ah como vale
como era bela a minha Faculdade
onde depois coloquei no jardim os azulejos com o poema de Castro Alves
outro dia a visitei porque minha filha advogada
desejou me mostrar o meu nome na placa
diante da qual há trinta e cinco anos eu fui fotografada
com tanta vida e tanta alegria e sonhando tanto
a beleza de quem tanto e tanto do mundo esperava
Relógio da Faculdade
Não sei se ainda toca como antes
Se os alunos visitam a sua engrenagem com a minha curiosidade
Quem sabe quando chegue a Hora
Uma réplica de mim permanecerá ali viva
Cantando cantigas medievais ao som do címbalo e da harpa
E dançando sob uma luz sobrenatural músicas dos Beatles
Com os longos vestidos bordados e coloridos
Com que assistia às aulas naquela idade


(poema escrito para o encontro de 35 anos de formatura da turma Direito/Ufpe)